Por Luciano Mattuella 1
Se o que somos está baseado nas experiências que vivemos e as memórias destas experiências se modificam no tempo, então nós não somos nada mais que uma metáfora de nós mesmos. – Pablo Gonzalez-Trejo
Considerações iniciais
Se a arte moderna, a arte das vanguardas, teve como uma de suas características centrais a destituição da imagem de sua função mimética – ou seja, a recusa da substituição do mundo pela sua representação pictórica -, a arte contemporânea propõe, para além da abstração, ainda a diacronização do fazer artístico, evidencia o fim da História da Arte entendida como uma linha do tempo sincrônica de influências, semelhanças e diferenças. O artista contemporâneo não se opõe a um movimento específico, mas faz da pergunta pela possibilidade da arte o conteúdo de suas obras.
Deste modo, enquanto a arte moderna se ocupava com o nonsense, com a retirada do sentido da narrativa da figura, a arte contemporânea convoca o espectador a encontrar a falta de sentido dentro de si mesmo, se oferece como ponto de interrupção no cotidiano, não como seu símile. Uma obra de arte contemporânea – dito de outra forma – institui no mundo um indício do brilho da alteridade, uma vez que aponta para os limites da representação e da potência racionalizante do conceito. Seguindo a concepção do historiador e crítico de arte Didi-Huberman 2, a obra de arte contemporânea não serve mais ao olhar apaziguado do espectador, mas sim interroga este olhar, propõe que as fantasias e a interioridade do público sejam posta a nu. É uma arte obscena, que expõe a posição falsamente ativa daquele que olha.
A obra de arte contemporânea, assim, não é meramente olhada, mas ela também olha desde uma interioridade infinita.
Arte, Utopia e Evasão
Para o filósofo alemão Ernst Bloch, a obra de arte carrega em si um pungente elemento utópico, uma vez que se trata da colocação em ato de uma versão de um mundo diferente deste em que se vive, ou seja, o artista excede em seu ato o status quo, materializando na sincronia da história do homens o fruto de sua imaginação, um sonho diurno. A arte, para Bloch, lida com o diferente, com o não esgotamento da realidade em suas imagens propostas e sedimentadas. Assim, para ele
toda grande arte tem o aspecto agradável e homogêneo do conjunto de sua obra rompido, eclodido, compulsado por sua própria iconoclastia, sempre que a imanência não é levada ao ponto do fechamento em termos de forma e conteúdo, sempre que ela mesma ainda se dá como fragmental [fragmenthaft]. 3
Podemos dizer que Ernst Bloch propõe, portanto, uma estética da fragmentação que tem como função central e característica própria a potência iconoclasta, ou seja, de superação da imanência através do rompimento de seu fechamento imagético. Já explicitamos que esta peculiaridade é bastante acentuada no que convencionamos chamar de arte contemporânea, de modo que podemos dizer que o ato do artista é um trabalho utópico. Aquilo que tem sua fonte no sonho diurno sempre está tingido pelos matizes da originalidade, do diferente, do novum. O artista abre uma ferida na realidade e expõe a fragilidade da exaustão do mundo em uma realidade artificial construída pelo conceito. A existência é maior que o pensamento.
Assim, podemos afirmar que Bloch advoga contra a superficialidade do cotidiano alienante, assegurando ao mundo uma dimensão de profundidade infinita. Em uma bonita passagem do primeiro volume de O Princípio Esperança, o filósofo diz:
Nunca encerrado: assim, o que cai bem justamente no demasiado belo é quando o verniz racha, quando a superfície descora ou escurece, como ocorre ao anoitecer, quando a luz incide obliquamente e os montes aparecem em primeiro plano. O esfacelamento da superfície, bem como o conjunto meramente ideológico-cultural, em que as obras tinham o seu lugar, libera a profundidade, onde quer que haja alguma. 4
A precisão da escrita de Bloch é evidente: trata-se de uma crítica ao demasiado belo, à beleza em sua face medusante, alucinatória e tautológica, enquanto superfície opaca que impede de ver mais-além, que se basta na fórmula o que vejo do mundo é o que há de mundo. Ora, não seria esta liberação da profundidade algo muito semelhante ao que o filósofo lituano Emmanuel Levinas chama de movimento de evasão? Em seu pequeno livro De l’Evasion, Levinas define este movimento evasão como “uma necessidade de sair de si-mesmo, de romper o acorrentamento mais radical, mais irremissível, o fato de que o eu é si-mesmo” 5. O movimento evasivo visa não apenas um outro modo de ser, mas um outro modo que ser, não se bastando com a simples aceitação de uma realidade diferente, mas em busca do movimento de sair permanente sob a forma de uma radical negação de reconhecimento narcísico na imagem de si mesmo refletida no mundo. A evasão é, antes de tudo, iconoclasta e, por isso mesmo, utópica.
Arte e Obliteração
Por mais que se possa pensar, então, que a arte contemporânea abriria para uma dimensão de evasão e, assim, ética, Levinas é sempre muito cauteloso ao aproximar o fazer artístico do encontro com a alteridade radical, com o rosto do outro homem. Para ele, a bem da verdade, a obra de arte não tem um rosto, mas uma espécie de fachada. Entretanto, em uma tardia entrevista a Françoise Armengaud, Levinas fala sobre um gênero específico de arte, a arte da obliteração, que seria, em suas palavras, “uma arte que denuncia as facilidades ou indiferença leviana do belo e que faz lembrar as usuras do ser, as ‘apreensões’ 6 das quais ele está coberto e suas supressões, visíveis ou escondidas, na sua obstinação a ser, a aparecer e a se mostrar.” 7
Ainda não uma arte que se poderia dizer ética, mas um fazer que opera na tentativa de explicitar a separação entre mundo e representação de mundo, entre o âmbito do vivido e do conceituado. A arte da obliteração não resolve a questão da diluição da coisa pela sua imagem, mas convoca a que se pense sobre este problema. Neste sentido, a arte obliterativa é uma espécie de ante-sala da dimensão ética. Não abre para a epifania do rosto do Outro em seu transbordamento infinito das margens do ser, mas torna evidente que a totalidade apresenta brechas por onde brilha a alteridade. A arte da obliteração aponta, no mundo, a existência de vias de evasão.
Talvez não seja apenas por um feliz acaso que um artista cubano contemporâneo chamado Pablo Gonzalez-Trejo afirme que suas obras se baseiam no processo de obliteração da imagem. Seu projeto artístico tem como ato fundamental o que ele chama de defacing – desfiguração talvez seja uma boa tradução – e se realiza em um duplo movimento: primeiro, o artista pinta a carvão sobre tela o rosto de figuras importantes na memória coletiva, como Che Guevara e Fidel Castro, por exemplo; depois, convida o público a obliterar estas figuras, oferecendo tinta branca para ser colocada por cima das telas. O resultado é um borrão acinzentado que vagamente lembra os contornos da personalidade que havia sido desenhada.
Nas visão de Gonzalez-Trejo, a função crítica deste projeto,
o ato de desfiguração e de défacement da obra de arte são, em si, uma metáfora: não podemos verdadeiramente apagar o desenho realizado a carvão nem negar a história e suas consequências, e pouco importa que a tinta seja aplicada sobre o carbono, o desenho inicial prepondera sempre ao de cima. A obra inicial do artista pode ser apagada, mas resta sempre uma imagem iconoclasta presente que pode ser considerada como uma nova obra de arte, abrindo uma nova perspectiva à arte contemporânea. 8
Ou seja, a função do borrão cinzento não é de substituir a imagem que resta por detrás, mas sim de explicitar que há um por detrás, de resgatar uma profundidade na própria obra. Se o mundo não passa da representação que temos de mundo, então as obras de Gonzalez-Trejo são o desnudamento do mecanismo de substituição da realidade pela sua imagem bela. Em outros termos, o artista propõe um instante de pausa na maquinaria do cotidiano, convocando o público a lidar com as figuras de sua própria história. Ou, como o próprio Gonzalez-Trejo diz:
O ato de obliteração obriga os visitantes a refletir sobre suas lembranças, examinar a relação que têm com suas memórias e permitir, assim, uma certa liberação de tensão. Este projeto tem por objetivo a reflexão sobre o conceito de impermanência do ser, da obra de arte, do desaparecimento da memória pessoal e coletiva. É também um questionamento visual, físico e psíquico sobre a identidade em evolução. 9
Assim, as obras de Gonzalez-Trejo são uma ótima ilustração de como a arte obliterativa é uma espécie de apelo à subjetividade e à singularidade, pois o espectador é convocado naquilo que lhe é mais íntimo e que não pode ser compartilhado: a sua posição frente à sua própria história, ou melhor, frente à versão de sua história presente naquele exato momento de sua vida. O borrão cinza interrompe o transcurso natural e concatenado do mundo exaurido no fechamento do dito sincrônico resgatando a dimensão do dizer diacrônico.
Referências Bibliográficas
BLOCH. E. O Princípio Esperança: vol. 1 [1959]. Trad. Nélio Schneider. Rio de Janeiro: EdUERJ: Contraponto, 2005.
GONZALEZ-TREJO, P. site pessoal do artista (http://www.pablogt.com/statement/); acessado em 21 de junho de 2009.
JACOBY, R. Imagem Imperfeita: pensamento utópico para uma época antiutópica [2005]. Trad. CarolinaAraújo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
LEVINAS, E. De l’évasion [1935]. Montpellier: Fata Morgana, 1982.
_________. De l’oblitération: entretien avec Françoise Armengaud à propos de l’oeuvre de Sosno. Paris: La Différence, 1990.
1 Psicólogo, psicanalista, especialista em Atendimento Clínico (Psicanálise), mestre em Filosofia (PUCRS), doutorando em Filosofia (PUCRS).
2 Cf. DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998.
3 BLOCH, Ernst. O Princípio Esperança: vol. 1 [1959]. Trad. Nélio Schneider. Rio de Janeiro: EdUERJ: Contraponto, 2005, p. 216.
4 BLOCH, Ernst. O Princípio Esperança…, p. 217.
5 LEVINAS, Emmanuel. De l’évasion [1935]. Montpellier: Fata Morgana, 1982, p 78.
6 Reprises, no original. A tradução deste termo é muito complicada, mas podemos identificar aí a partícula prise, que remete ao verbo prender que significa pegar algo com a mão, ter algo em seu controle, tomar algo para seu domínio. (N.T.)
7 LEVINAS, Emmanuel. De l’Obliteration…
8 GONZALEZ-TREJO, Pablo. site pessoal do artista.
9 GONZALEZ-TREJO, Pablo. site pessoal do artista.